quinta-feira, maio 12, 2005

hipnose

gente obstinada tem a mania de achar que comanda tudo. os desejos, as vontades, o caminho que tomam as sensações.
gente obstinada caminha por aí, despreocupadamente, segura de si e dos passos que pousa em cada chão.
gente obstinada não se deixa levar. leva tudo à frente.
há, contudo, um dia em que a obstinação adormece. o sono é profundo. está em hipnose... e assim começa a nossa história.

"dó menor. um acorde. pausa.... dois. pausado sempre... três. piano.... quatro. sustém... cinco. crescendo... seis. mezzoforte... sete. forte... oito. folêgo!

a melodia já serpenteia na cabeça, louca e total em todo o espaço sensitivo do corpo. tomado já pelo martelo e a corda que percute, é devorado pela vibração atirada para o ar e que chega cá fora abafada, espalhando-se como chuva miudinha no céu do dia cinzento. inspira de novo.

sente cada partícula engolida com o fôlego lento. sente até a ponta dos dedos e o coração que bate num outro corpo. é aquele bater (também) abafado que se ouve com o ouvido encostado ao peito de outra pessoa.

a música prossegue. e o passo apressado segue a linha invisível do som hipnótico. até à janela. é aquela janela! é aquela música...
está inebriado. o corpo, a mente, os sentidos. todos se vidram no som do piano que.... pára!

a professora repete dois compassos. a voz por cima das teclas, do martelo e das cordas percutidas. explica qualquer coisa que não consegue ouvir. a memória grita-lhe "o sentimento! ela está a pedir mais sentimento! nos dedos, na execução. não basta premir as teclas. não basta executar..."

a aluna assente com um aceno. a cena é bebida como se um mendigo faminto observasse, do lado de fora da janela, um bom restaurante. volta a posicionar as mãos. aquela posição de dedos flectida e segura, suave, firme. dó menor. acorde. pausa...

a hipnose solta-a por segundos para a deixar atirar para o lado, sem desviar o olhar da sala pequena e insonorizada, um embevecido "é rachmaninov. é lindo!" a um segundo de perder uma lágrima torna a ser levada na espiral do som que serpenteia. a hipnose dura enquanto a professora não torna a interromper a música para uma "lecture" de longa duração. ouve-se agora a bateria da sala ao lado, o vocalise da soprano aprendiz de callas...

torna a inspirar, mais longamente desta vez. suspira em soluços, como se tivesse acabado de chorar muito durante muito tempo.
belo. belíssimo. ser assim tomada de assalto por tão bela música e em tão belo lugar.

foram as malditas saudades que a hipnotizaram tanto naquele lugar. ou terá sido, porventura, o meridiano... em greenwich, o king charles court alberga hoje o trinity college of music. foi, em tempos, o old royal naval college, um lugar cheio de história mesmo em frente ao tamisa.

o que ouviu foram os primeiros compassos do concerto nº 2 para piano em dó menor, de sergei rachmaninov. uma música descoberta numa tarde de sol, quando as mãos de vladimir ashkenazy atravessavam as colunas da aparelhagem no anexo envidraçado.

é das mais belas músicas do mundo. e fica na cabeça...

dó menor. um acorde. pausa.... dois. pausado sempre... três. piano.... quatro. sustém... cinco. crescendo... seis. mezzoforte... sete. forte... oito. folêgo!"


depois de escrever este texto, procurei referências a rachmaninov e ao período em que escreveu o seu segundo concerto. incrivelmente, encontrei esta história. coincidência ou não...
imperativo conhecer a peça, começando pelo 1º andamento - moderato - aqui.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Lindo!!!!!!!!!!

8:21 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Xis!

8:22 da tarde  
Blogger Barbed Wire said...

Pois... o problema é que há gente que se leva demasiado a sério...

9:57 da manhã  

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